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Braços tatuados

Mitrídates

As vezes eu não queria ter certeza de tudo. Ter certeza de que esse gosto azedo que sinto na boca, é do leite coalhado que tomei de um gole súbito, querendo sarar dessa queimação do estômago que me deixa irritado. Ter certeza que aquele papel em baixo da porta, é a conta do gás atrasada, que o senhor Aristófanes insiste em me entregar com um bilhetinho escrito: "Essa é a última vez que vou aceitar atraso, seu ernegúmeno". Ter certeza que o senhor Aristófanes não sabe escrever energúmeno, que ele nem sabe o que significa, e que só fala porque deve ter ouvido em algum filme que fica vendo naquela tv pequena que ele tem, preto e branca, dessas tipo do Paraguai, com um bombril na antena e papel celofane na tela. Ter certeza que esse tremor na mão esquerda não é do tumor crescendo na minha cabeça, quase um caroço de pêssego cutucando o cerebelo, que me fez derrubar a caixa do leite azedo, que agora escorre geladeira abaixo, deixando um cheiro de vômito de bebê pelo apartamento todo, leite que tomei pra me livrar da queimação, efeito colateral desse tratamento que me faz cair os cabelos. Ter certeza que essa sensação de agonia não é passageira, que esse aperto no peito não é "mal de quem pensa muito", como disse a minha mãe, dona Cármen, enquanto limpava uma tainha pro almoço do seu Otávio, o namorado dela. Ter certeza que hoje é mais um dia em que o tratamento não fez efeito, mas que "a esperança é o porto dos fortes", como disse o Dr. Plínio, o meu médico. Ter certeza que esse frio que passeia pelo meu corpo, não é o efeito do chumbinho amargo que misturei ao leite coalho, que comprei por doze reais a caixa, naquela agropecuária perto da vala, dizendo que era para matar ratos, mas que na verdade era pra matar em mim essa certeza que eu tenho de tudo.

FIM.

 

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