

Deserto
Eram nove e quinze da manhã.
Com as mãos doloridas de tanto forçar a velha corda que envolvia o pescoço do empacado animal, o senhor José procurou uma vara ou qualquer coisa que servisse como instrumento punitivo, para assim poder descontar a frustração no lombo do cansado e irredutível jumento; frustração essa de se encontrar estagnado ante um sol de desorientar, junto da jovem mulher grávida de nove meses, dois sacos de linhagem velha e um saco de pão ázimo.
“Jumento... Nome melhor não haveria para tal imbecil quadrúpede”, pensou o velho senhor com suas barbas longas e sujas do pó do deserto.
A senhora Maria – sua esposa – sofria com a sensação de estar cozendo por dentro, sensação esta que era ampliada por seu estado de natividade latente; o que fez a jovem senhora descer do imóvel animal e procurar alguma proteção embaixo da pouca sombra provida por uma pequena e seca árvore que, estática, servia de elemento solitário para a paisagem.
Ali, homem, mulher e animal formaram um quadro insólito do sofrimento mundano, emoldurado pelo tom alaranjado das areias do deserto que lhes cercavam; ali homem, mulher e animal sofreram em silêncio, cada qual o seu próprio sofrimento - herança maldita de todo ser humano: compartilhar mazelas não cabe a quem sofre, mera ilusão de quem vive na superfície das coisas. Todo homem vive só com seus mais profundos pensamentos e é de lá que nasce a dor de existir, esse sentimento inexplicável e implacável que nos atinge nas efêmeras horas da rotina.
O senhor José voltou até o lugar onde estava o jumento turrão. Esse lhe olhou, antevendo o desenrolar dos fatos, fixando o olhar, principalmente, a vara a mão do irascível senhor. Então, como que instintivamente, o jumento colocou-se a galope. Partiu rumo ao desconhecido, deixando um derrubado, frustrado e irado senhor José para trás. O jumento debandou-se para um mundo onde, talvez, não existam varas, desertos e nem Josés. Partiu rumo à liberdade.
A senhora Maria assustou-se diante de tal inesperado acontecido. Foi de encontro a José, e o encontrou misturado ao chão, carregando ao rosto uma lama avermelhada formada pelo pó e pelas lágrimas. Encontrou-se ferido apenas ao ego, por não conseguir dobrar um animal mais jumento do que ele próprio, e logo levantou-se, amparado pela esposa.
Passada a euforia do momento, Maria começou a sentir o efeito de inesperada emoção súbita. O bebê – como que curioso em saber tudo que se passava fora do seu invólucro materno – começou a dar sinais de querer nascer. Foi José que agora precisou amparar Maria; Precisavam encontrar um lugar onde poderiam trazer ao mundo o fruto esperado; Precisavam sair daquele deserto onde se encontram; Precisavam correr contra o tempo.
Eram vinte e quinze da noite.
A velha desprovida de felicidade senhora, varreu a velha desprovida de beleza frente do seu casebre. Trouxe a mente imagens de um tempo que não voltaria mais, as horas que se passaram, o dia de ontem, o mês que já acabou. Percebeu no seu ato de varrer uma mecanização do cotidiano. Percebeu que a vila onde morava - uma feia e esquecida vila, perdida no meio de um deserto quente e escasso de vida – estaria sempre fadada à mesmice.
Envolta de tais pensamentos torturantes, não percebeu a aproximação do casal recém-saído do deserto. Casal esse que, por sua vez, em compensação irônica da vida, percebeu a velha senhora, “Há aqui algum lugar para se pousar por uma noite?” Perguntou o homem. A velha, retirada à força das profundezas de sua mazela, respondeu em automático, “Aqui não. Vá procurar mais à frente. Minha casa é feia e pequena o suficiente para amparar somente a mim.”
Assim a velha desprovida de felicidade senhora, que em pensamentos ansiava em sair da mesmice, por vontade própria despachou o senhor José e a jovem senhora Maria, sem nem perceber que o novo estava ali, pronto para nascer. Cega por uma vida mecanizada, deixou o tempo existir assim somente; ficando para sempre fadada à mesmice, sem nunca entender a complexidade de um dia como esse.
Um dia repleto de amargura e sofrimento, onde um menino estava para nascer. Um dia em que um sofrido jumento encontrou sua liberdade. Um dia em que um irascível José foi amparado por sua jovem esposa. Um dia em que o desconhecido bateu a porta de uma velha senhora e ela – sem pensar – o despachou, voltando a velha rotina; novamente conformando-se com o seu destino medíocre, desejando pelo dia em que a vida lhe trouxesse alegria.
Até lá, só o que restou a velha desprovida de felicidade senhora foi varrer.
FIM.