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Fotografia de beleza

Bife de  Fígado

                Acordou de súbito pelo barulho de murros em sua porta. Sentou na cama ainda zonzo. O susto foi tanto que demorou alguns segundos olhando para a parede sem reboco à sua frente. Com as mãos se escorando nos joelhos, apertou os olhos num movimento rápido e conseguiu ler, escrito em giz de cera no tijolo: “te amo papai”. 

                 Os murros se intensificaram, e ele, num esforço dolorido, arrastou uma cadeira que estava    perto de seu leito; a escora da vez agora é ela. Esforçou-se mais, agora para levantar. Segurou um gemido débil de dor no canto da boca, e, pé-ante-pé, arrastando a cadeira, foi até a porta do barraco. Antes de abrir, ainda sem saber ao certo em que planeta da via láctea se encontrava, perguntou apreensivo:

               - Quem é?

               - Abre logo Joca, porra!

               Abriu a porta sem saber quem era, indo na correnteza da aspereza da ordem. Um rosto negro que espelhava a noite, de olhos grandes, castanhos e cabelos pretos como o manto onde as estrelas são costuradas no céu, adentrou exasperada, com um outro ser menor aos braços.

               Ele então, pela beleza operística da dor retratada naquela pietá negra, acordou de súbito da modorra do sono e então se atentou para a realidade. O barraco, o morro, a dor que sentia, a mulher negra, o planeta... ele soube, então, em que parte do universo se encontrava.

               A mulher colocou o ser por sobre a cama de onde o homem acordou em susto.

             - Preciso de água, Joca... Água!

            - Só da torneira lá de fora...

            - Vou lá pegar, segura na mão dela!

            O homem voltou, arrastando a cadeira-muleta, até o lado da cama. Com esforço, contornou-a e lhe conferiu de volta o seu objetivo primário de vida, sentando nela. Pegou a mão pequenina da menina que, através do toque, abriu um dos olhos.

          - Papai... é você?

          - Sou eu sim, querida.

          - Onde tá a mamãe?

          - Foi buscar água lá fora, já volta...

           - Eu vou morrer papai... eu sei...

           - Não! Não fala uma coisa dessas... eu não vou deixar.

          O furacão negro entrou novamente pela porta, carregando nas mãos uma lata cheia d’água. Dentro estava um pano amarelado de sujeira, que ela pegou e torceu, deixando-o apenas úmido, para assim, colocá-lo na testa da menina, que agora apertava a mão do homem. Ele sentiu o calor das mãos pequenas apertando as suas e, com a mão livre, foi aferir-lhe a temperatura.

          - Ela tá ardendo em febre, Suzana.

           - Eu sei Joca; e isso é coisa de bruxa...

           - Coisa de bruxa?

          - É, olha o pescoço dela, todo chupado...

          - Essas marcas roxas não parecem chupões Suzana... são marcas de dedos.

          - Então Joca, é bruxa...

           - Tá mais para mão de homem, Suzana.

          - É bruxa Joca, porra! Benze ela, caralho!

          - Eu disse que era a ultima vez que aquele canalha ia colocar a mão nela, Suzana!

          - Deixa de ciúme Joca, isso é bruxaria, porra! Pega o bife de fígado e benze ela...

           Um grito de dor ecoou pelo morro e fez a discussão cessar. A menina agora se desesperava pela dor que lhe estourou em cheio ao peito.

          O homem, num esforço sobre-humano, levantou-se sozinho e foi até uma caixa de isopor no canto do barraco. Lá tirou de dentro um pedaço de bife de fígado, que pela cor não estava nos seus dias melhores. Voltou e colocou o bife por sobre o peito da menina. Em voz balbuciada, quase indecifrável, entoou os versos de uma reza antiga.

           - Deus é o sol, Deus é a Lua... Deus é o sumo da santíssima Trindade... Em carne te benzo, em carne te curo, teu espirito é puro e tua dor eu expurgo!

          O homem repetiu a reza, acelerando cada vez mais as palavras. A dor da menina foi num crescendo rompante à medida em que a velocidade da oração aumentava também. Num duelo metafisico, dor e palavras lutaram durante longos minutos. A negra, sem forças para testemunhar tal guerra, saiu pela porta do barraco e acendeu um palheiro, que de tão forte, fez a noite ganhar um cheiro pesado de câncer.

          Entre fumaças e ignorâncias, percebeu um vulto crescer na penumbra do morro. Sem conseguir ter capacidade de reação, o vulto veio ao encontro dela com o punho cerrado, transformado num murro violento que lhe atingiu a face negra como negro é o sentimento carregado pelo vulto. A mulher tombou sem vida, derrubando o palheiro aceso para debaixo da soleira do barraco. O vulto entrou pela porta e viu, lá dentro, o homem, que concentrado na reza para cura da menina, não percebeu o vulto crescer às suas costas.

          Num golpe único a nuca, o vulto cessou a oração.

          No dia seguinte, um jornal noticiou um fatídico incidente: três corpos – dois adultos e uma criança – foram encontrados sem vida num barraco que pegou fogo no alto do morro.

         - Ela fumava muito, a ex mulher dele, deve ter ido visitar e... já sabe. -, disseram os vizinhos.

         - Coitado do seu Joca, era um ótimo benzedor -, disse outro, enquanto jogava sinuca no bar da esquina.

        - Devia ser -, respondeu o homem que bebia numa das mesas.

        - Você não estava com a ex-mulher dele que morreu também? -, perguntou o dono do bar.

         - Fiquei uns dias, mas não deu certo... a menina era muito chata.

        No fundo do bar, uma mulher apenas negativou com a cabeça enquanto temperava um bife de fígado.

 

FIM.

 

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