

A Vitrine dos Cadáveres Lustrosos
O mundo é uma vitrine de cadáveres lustrosos. Assim enxergo a vida. Pelos menos é assim que a defino. Nunca disse isso a ninguém, mas não por falta de coragem - uma vez que coragem nunca me faltou, sempre a levei acorrentada ao peito - mas somente por falta de oportunidades. As mesmas oportunidades que edificaram tal pensamento em minha humana e falha percepção.
Sou um homem de poucas materialidades. Algumas roupas, pedaços de papelão que uso como abrigo e muitas poucas realizações. Sou, a vista de muitos, o retrato fidedigno do fracasso. Sou a sombra daquilo que temem. Daquilo que passam a vida toda a fugir. Sou, para eles, a realização de um pesadelo que teima em assombrar as mais profundas áreas da psique humana. Eu sou o lado real do reflexo no espelho, aquele que nem sempre queremos ver. Sendo tudo isso, sou apenas um homem, na mais pura e honesta definição da palavra.
Da minha humilde posição na escala social, vejo a rotina acontecer num ritmo muito mais lento do que daqueles que correm. As pessoas vêm e vão, esbaforidas, com seus ternos e taileurs, aprisionadas na automatização que o tempo lhes impõe. As mãos sobem e descem trazendo vistosos relógios ao alcance das vistas, os dedos movimentam-se frenéticos ao tocar as telas e as teclas. Só não tocam os outros. Do amplo espaço na calçada que minha solidão imposta me oferece, vejo os outros se apertarem em transportes, finalmente tocando e sendo tocados, mas agora por uma coletividade imposta. Assim, por tamanha imposição, não há nem mais espaço para a liberdade. Assim vejo o mundo e sua vitrine de cadáveres lustrosos.
Sou um mendigo. Algo de nenhuma surpresa a vocês que me leem até agora, devido aos fatos mencionados. Podem até surpreenderem-se alguns, pelo uso de certas palavras ou até mesmo pelo conteúdo da escrita, uma vez que cultura, no curto saber da maioria, é dádiva para quem tem dinheiro. Mas sou um mendigo real. Sendo real proveniente de realidade, uma vez que não há nenhuma realeza em se morar na rua. Sou morador da calçada mais movimentada de sua cidade, tendo você certamente já cruzado uma ou outra vez comigo. Não sinta vergonha em não se lembrar de mim. Eu sempre lhe vejo e você nunca me vê. Assim a vida segue.
Ser invisível tem suas qualidades. Da rua se vê melhor, se percebe melhor, é de lá que nascem as histórias que dão forma ao grande livro do existir, como essa que lhes irei contar. Certa noite, extremamente cansado da ociosidade de meu dia, não consegui pregar os olhos, numa ação paradoxal. Tendo a frustração me tomado, levantei-me um pouco para ver se passava tal estado, ficando a observar a cidade morta nas horas da madrugada. Percebi ali, naquela solidão toda - tanto minha, quanto da cidade - os quão programados podem ser os atos do homem. Senti um vazio imenso, uma tristeza deslocada. Pensei em minha própria condição. Absorto, não percebi a aproximação de alguns garotos, todos em estado adiantado de ebriedade. Cometi o maior erro que um homem pode cometer: pensar. Pensar, divagar não serve para todos. Alguns detêm esse privilégio. E eu, um pobre e imundo mendigo, de pé, olhando para o nada em plena hora da madrugada é uma afronta muito cruel ao estado de normalidade. Os garotos, numa ação rápida, me encharcaram de querosene. Depois veio o fogo. Então eu, numa madrugada de sexta, tornei-me uma bola de fogo humana. Mais um cadáver para a vitrine.
Deveria ter continuado invisível, deitado envolto da minha própria pequenez. Ao invés disso pensei. Meu maior erro. Mas não sinta pena por mim. O mundo é uma vitrine de cadáveres lustrosos, cadáveres que caminham esbaforidos, sem tempo para nada, nem para pensar.
FIM.